Frente e Verso: A Coisa Ficou Preta
- ateliedoisemeio
- 27 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de mai.
FRENTE E VERSO é uma série de entrevistas que explora o percurso criativo de artistas de diversas linguagens. A cada episódio, um artista compartilha um pouco da sua trajetória, suas inspirações e os desafios que surgem no caminho. Cores, técnicas e ideias se encontram no papel, revelando histórias de quem cria, transforma e imprime.

Foto: Acervo Gleyson Borges
GLEYSON BORGES, também conhecido como A COISA FICOU PRETA, é artista visual desde 2016 e constrói sua trajetória a partir de uma perspectiva afrocentrada, usando diferentes linguagens para provocar reflexões, criar diálogos e fortalecer identidades negras. Pensa em arte como uma responsabilidade social e ela precisa estar onde as coisas acontecem, e pra ele a rua é esse lugar. Ela é o maior museu do mundo, aberto 24h por dia, 7 dias por semana e qualquer pessoa pode entrar a qualquer momento. Por isso faz questão de levar seu trabalho para a cidade, fazendo intervenções pretas nos muros brancos
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DOIS E MEIO Como você descreve a cena de arte em Maceió? Foi o primeiro lugar em que colou seus lambes?
GLEYSON BORGES A cena artística de Maceió é muito rica. Tem muita gente massa fazendo um trabalho sensacional por aqui, inclusive desbravando Brasil e mundo afora. Na arte urbana, o pixo, o bomb e o grafite estão presentes em toda e qualquer esquina da cidade, gritando muro afora, acho isso sensacional. Infelizmente a cena do lambe lambe, que é meu formato principal de trabalho, não é tão expressiva assim, com pouquíssima gente colando. Explorar esse formato aqui na minha cidade, onde comecei e sigo colando meu trabalho, acaba sendo uma forma não só de expressar o meu trabalho e espalhar a minha mensagem, mas também quem sabe de fomentar esse formato artístico que é tão clássico, democrático e acessível.
DOIS E MEIO Quando começou a trabalhar com colagens já tinha vontade de levá-las para a rua?
GLEYSON BORGES Total. Comecei minha carreira artística em 2016, montando alguns quadros com madeira reaproveitada e pintando eles com stencil. Nessa época 'a coisa ficou preta' nasceu como uma ideia de levar arte pra rua, mas eu não tinha ideia de como tangibilizar isso, já que apesar de achar stencil um formato incrível, eu tinha meus problemas na aplicação dele (rs). Essa vontade de levar arte pra rua veio como uma forma de retribuir o que a arte fez por mim e pela relação que tenho hoje com a minha negritude, por causa do rap nacional. E eu queria retribuir através da arte também. Foi aí que 2 anos depois, em 2018, eu abri os olhos para o lambe lambe, formato onde eu poderia explorar toda a minha bagagem com design gráfico e tangibilizar, tornar real dentro da cidade. E foi aí que tudo começou.

"Pode subir, é no 13º andar" (da série 'Você me vê ou só o que eu carrego')
Arte de Gleyson Borges: Divulgação
DOIS E MEIO Você teve sua arte viralizada. Seu comportamento nas redes mudou muito depois disso?
GLEYSON BORGES Mudou bastante. As mídias sociais são um canal importante que remove as limitações geográficas da minha arte e faz ela chegar a mais pessoas. O que é bom e ruim. Ruim quando a gente coloca o filtro do racismo estrutural presente no nosso país. Então viralizar é estourar a bolha da comunidade que se interessa e entende o que eu faço como valioso, e ir parar no feed de pessoas que acreditam que têm o direito de me xingar, fazer discurso de ódio e racismo nos comentários. No começo isso me deixava muito mal, acabava com o meu dia. Ler os comentários era uma cena de horror, e podiam ter 10 comentários positivos, mas no meio deles, 1 comentário racista pesava como se fosse 100.
Por um tempo parei de ler os comentários. Mas fui ganhando maturidade, me blindando e me protegendo, e comecei a transformar esse ódio em combustível para meu trabalho, e também em conteúdo. Sou um cara bem humorado, gosto de rir, e as pessoas que param o dia dela para comentar bosta sobre o meu trabalho são uma piada. Então acabou virando série nos meus perfis comentar os melhores piores comentários que aparecem, ridicularizando e tentando tirar alguma coisa boa desses ataques.
DOIS E MEIO Temos a honra de tê-lo como parceiro da Dois e Meio e de imprimir suas obras. Quais são seus principais critérios na escolha das imagens que serão impressas e qual é a importância da impressão de alta qualidade e durabilidade no seu processo artístico?
GLEYSON BORGES Eu amo o meu trabalho e demorei bastante para decidir disponibilizar obras à venda. E pra mim nunca fez sentido fazer isso entregando uma qualidade ordinária. Eu me entrego inteiro pra minha arte e isso vale muito, nada mais justo do que ela ir pra casa das pessoas que fortalecem o meu trabalho como algo que vai durar mais de 100 anos, sabe? Isso pra mim é indiscutível e eu não abro mão.
Sobre as escolhas das minhas obras, não existem tantos critérios assim. São obras que eu imagino que ficariam belas emolduradas nas paredes de casa e é isso kkkkkkkk Ah, meu trabalho algumas vezes costuma trazer reflexões pesadas, colocar o dedo na ferida. Algumas dessas artes, para mim, não faz sentido monetizar, então elas não costumam ir para a lojinha.

"Felicidade Pintada"
Arte de Gleyson Borges: Divulgação
DOIS E MEIO O sucesso nas redes sociais muitas vezes cria uma imagem distante da realidade do artista. Você já viveu alguma situação em que sua visibilidade artística não correspondia ao seu momento pessoal ou profissional?
GLEYSON BORGES Queria muito que minha vida fosse como ela é mostrada nas redes sociais kkkkkkk O padrão é essa vida mostrada ser bem longe do que eu vivo de verdade. Vivo uma luta diária entre medo e coragem para tentar viver do meu trabalho artístico, fazer relevante e que eu acredito e ao mesmo tempo tirar o sustento disso. Infelizmente views e likes não pagam contas, e eu tenho sonhos e planos a realizar e eles não são baratos.
DOIS E MEIO Você disse que encontrou na arte uma forma de expressar sua negritude e de ajudar outros pretos e pretas a se verem, se ouvirem, se entenderem. Quando você percebeu pistas mais evidentes de que trabalharia com essa ferramenta tão poderosa?
GLEYSON BORGES Quando eu, como um jovem adulto na época, cheguei a conclusão de que eu era um homem negro. Eu já tinha sido muita coisa. Mulato, marronzinho, queimado de sol, moreninho, pardo... mas eu cheguei no dia que me (re)descobri negro. Foi um processo difícil e doloroso. Acho que ainda é. Mas eu cheguei nesse ponto de ruptura, e eu só consegui fazer isso por causa da arte, por causa do rap, por causa da música. E no momento que eu percebi que a arte fez isso por mim, eu decidi que eu ia retribuir fazendo arte, e quem sabe essa arte faria o mesmo por outras pessoas como eu.

"Colação"
Arte de Gleyson Borges: Divulgação
DOIS E MEIO Quais foram as suas maiores referências de arte na infância? Essas referências ainda perduram?
GLEYSON BORGES Eu tenho uma memória muito clara de passar noites lavando o quintal de casa ouvindo o álbum 1000 trutas, 1000 tretas do Racionais MC's durante a adolescência. Mas minha maior referência sem dúvidas é Leandro Roque de Oliveira, o Emicida. Artista que eu tive a sorte de conhecer sua primeira mixtape lá em 2009, eu com meus 17 anos, e acompanhar sua carreira e o que ele tem a dizer até hoje.
Ah, eu também assisto anime desde quando eu me entendo por gente. É sutil, mas é uma referência que sempre entra nos meus trabalhos de alguma forma.
DOIS E MEIO Qual o momento mais emocionante da sua carreira? Algo que te motiva a continuar com o trabalho na arte.
GLEYSON BORGES Eu tenho uma obra chamada 'Colação', que é uma releitura da obra "Flower thrower" do Banksy. A obra retrata um jovem negro, vestido em uma beca de colação de grau, pronto para jogar seu diploma como se fosse uma granada. A educação é nossa arma mais forte. E aí um dia eu fui marcado eu uma foto no instagram, e quando abro, era a foto de um rapaz recém formado, repetindo a pose. Eu to escrevendo isso aqui com os olhos cheios de lágrimas e todo arrepiado. Por que esse foi o momento que eu tive um retorno de que a minha arte tá cumprindo com o objetivo dela. Tá dando certo. Esse é um dos momentos mais marcantes da minha vida como artista. Porque pra mim arte é isso, é gerar ação.
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Acompanhe o trabalho do artista Gleyson Borges:
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